segunda-feira, 14 de julho de 2008

A guerrilha na PF



Divisões internas minam a instituição e as investigações
O delegado-geral Luiz Fernando Corrêa: ações para melhorar a qualidade técnica da PF




O Cara





O inquérito produzido pelo delegado federal Protógenes Queiroz, que embasou o pedido de prisão do banqueiro Daniel Dantas e companhia, é um texto confuso, eivado de convulsões ideológicas e pródigo em julgamentos sem nenhuma base na realidade. É um exemplo de como não deve ser conduzido um trabalho policial com ambição de ter impacto no resultado final do julgamento sobre seus alvos. O inquérito tem relatos imprecisos sobre os investigados e intermináveis transcrições literais de grampos telefônicos a partir dos quais são feitas suposições e emitidas opiniões. Perpassa todo o relatório um viés esquerdista na linha "somos contra tudo isso que está aí". O capítulo dedicado à imprensa é dos mais disparatados. Sem uma única prova e até diante de evidências em contrário coletadas por ele mesmo, o delegado se contorce para concluir que jornais e revistas, entre elas VEJA, estariam ajudando Daniel Dantas a se safar ou a se fazer de vítima (veja o boxe). Seria apenas risível, não fizessem essas acusações parte de um inquérito produzido por uma autoridade do estado brasileiro, com poder de dar voz de prisão e influenciar togados. Ao fim e ao cabo, o amadorismo demonstrado pelo delegado Protógenes, como diz a Carta ao leitor desta edição, facilitará, provavelmente, a impunidade dos acusados. Daniel Dantas e o especulador Naji Nahas decerto têm muito a explicar à Justiça, mas nada do que realmente interessa ou possa levá-los a uma condenação está no inquérito que motivou a prisão de ambos e dos demais envolvidos.
A prisão de Dantas, em especial a segunda, deveu-se ao flagrante armado de forma engenhosa pelos policiais, e não à má literatura do delegado Protógenes, que só vai beneficiar os acusados. Mandante de ações de espionagem empresarial mirabolantes, o banqueiro Dantas foi feito de bobo no plano da realidade mais terrena, ao tentar subornar, via intermediários, um delegado da PF. Em 11 de junho, o delegado Victor Hugo Ferreira recebeu um telefonema de Humberto Braz, ex-presidente da Brasil Telecom e funcionário do banco Opportunity, de Dantas. Ele dizia ter informações de que a Polícia Federal estava investigando seu chefe e que gostaria de marcar uma reunião para tratar do assunto com Ferreira, pois sabia que o delegado estava no caso. Ambos, então, combinaram um encontro para 18 de junho, na churrascaria El Tranvía, na região central de São Paulo. Ferreira avisou seus superiores e a Justiça sobre o contato e decidiu gravar a conversa. Quando chegou ao restaurante, deparou com Hugo Chicaroni, que se apresentou como amigo de Braz e lhe pediu que fosse confirmada a existência da investigação. Diante da resposta positiva, tentou comprar o delegado. Ofereceu a ele 50 000 reais por ter aceitado ir à reunião e disse que lhe entregaria mais 500 000 dólares se Dantas e sua família fossem excluídos do relatório final da PF. Ferreira fingiu aceitar a oferta. Foi até a casa de Chicaroni, no bairro paulistano de Moema, e saiu de lá com os 50 000 reais prometidos. Combinaram de se encontrar novamente, para liquidar o restante do pagamento.








A Teoria





O ex-delegado-geral Paulo Lacerda (à esq.) e seu amigo Protógenes: teorias conspiratórias
No dia 23, voltaram ao restaurante El Tranvía. Dessa vez, além de Chicaroni, Braz também estava presente. O encontro foi filmado pela polícia com uma câmera oculta. O delegado apresentou documentos para comprovar a existência da investigação. Quando viu a papelada, Braz disse que estava autorizado por Dantas a aumentar a oferta de suborno para 1 milhão de dólares, em duas parcelas. A primeira a ser paga antes do fim da operação e a última, depois que a investigação estivesse concluída. Dois dias mais tarde, Chicaroni e o delegado reencontraram-se, dessa vez no restaurante Paddock de Moema. O preposto de Dantas deu ao delegado mais 80 000 reais. Não voltaram a se falar até que, no dia 8, a polícia deflagrou a Operação Satiagraha e prendeu Chicaroni. Na casa dele, foi achada a quantia de 1,28 milhão de reais, que supostamente seria usada para completar o pagamento da propina. Em depoimento prestado depois de ter sido preso, Chicaroni confirmou a tentativa de suborno do delegado a mando de Dantas e disse que o dinheiro lhe havia sido repassado por funcionários do Opportunity. De acordo com a PF, o milhão e lá vai pedrada apreendido "reforça a hipótese de que Daniel Dantas tinha pleno conhecimento da propina, uma vez que as interceptações telefônicas e telemáticas mostraram que Humberto Braz é o braço-direito de Daniel Dantas na organização criminosa". Com o depoimento de Chicaroni, o banqueiro, que havia sido solto na manhã do dia 10, após duas noites em cana, foi outra vez trancafiado na cadeia da PF, em São Paulo. Na sexta-feira, ele saiu da prisão graças a outro habeas corpus concedido pelo ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal. Assim como motoristas que subornam guardas de trânsito não mofam na prisão, o banqueiro ficou livre para responder a esse processo fora das grades. Do ponto de vista da lei, é a mesma coisa. O flagrante esgotou-se nele próprio, como geralmente ocorre nesses casos. Na noite de sexta-feira, dos 17 detidos pela Operação Satiagraha, apenas Chicaroni continuava preso. As acusações de fraudes, corrupção ativa e demais crimes financeiros que constam do inquérito de Protógenes estão de tal forma diluídas em citações vagas e conclusões estapafúrdias que, muito provavelmente, em vez de pesar contra os acusados podem até ajudá-los a escapar. A obra investigativa do delegado Protógenes talvez tenha o mesmo destino das pinturas de seu homônimo famoso, que viveu na Grécia no século IV a.C., das quais nada sobrou para ser visto, sobrevivendo apenas pelos relatos de cronistas contemporâneos.








O Indicado





Gilmar Mendes, presidente do STF: "Os órgãos estatais agem no limite do justiçamento"
Deixando de lado as razões de fundo, como a falta de um sistema educacional eficiente, capaz de gerar uma quantidade suficiente de profissionais competentes nas mais diversas áreas, há uma razão de circunstância que explica o fenômeno Protógenes: a balcanização da PF. Ela hoje se encontra dividida entre uma parte boa e uma banda ruim. A primeira está sob a batuta do delegado-geral Luiz Fernando Corrêa. Além de estar empenhado em limpar a Polícia Federal dos quadros corruptos, ele quer melhorar a qualidade técnica dos policiais federais, para, desse modo, produzir inquéritos e ações mais bem fundamentadas. A banda ruim, por sua vez, age à revelia do delegado-geral e obedece a instintos de vingança pessoal e política, o que enfraquece o trabalho policial e lhe tira a substância e o vigor necessários para prevalecer na Justiça. Paulo Lacerda, ex-delegado-geral da PF e hoje na direção da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), tem ainda devotos na instituição que comandou e há a suspeita de que eles cumpram missões a seu pedido.
Lacerda odeia Dantas porque o banqueiro mandou a empresa Kroll espioná-lo em 2004. Suas impressões digitais foram vistas na organização e no deslanche da Operação Satiagraha. O delegado Protógenes confiou a espiões da Abin parte do trabalho de vigilância e monitoramento dos suspeitos. A estratégia de ação e o resultado das diligências eram compartilhados apenas por Protógenes e pelo atual diretor da Abin, Paulo Lacerda, ex-diretor da PF. A explicação para isso: os superiores do delegado atuariam no interesse de Dantas. Segundo a teoria conspiratória, o delegado-geral Luiz Fernando Corrêa foi alçado ao posto por pressões de políticos ligados a Daniel Dantas, e sua missão seria acabar com todas as investigações contra o banqueiro. Suspeitando de tudo e de todos, Protógenes recorreu à Abin para ajudá-lo na investigação e mandou recados a colegas seus da PF de que tinha provas e gravações que mostravam que eles estavam trabalhando a favor de Dantas. Não se sabe que provas são essas e nem se elas efetivamente existem. Em público, Corrêa elogiou e defendeu o trabalho da polícia, mas, assim como o ministro da Justiça, Tarso Genro, eles só souberam da operação quando ela já estava em andamento.






O Motivo



Foi uma das ações da Abin, aliás, que quase pôs o sigilo da Satiagraha abaixo. Dantas soube que estava sendo investigado no dia 27 de maio passado, quando Humberto Braz levava sua filha à escola no Rio de Janeiro. O motorista do carro percebeu que estava sendo seguido por um Astra preto, com placa de São Paulo. A delegacia anti-seqüestro foi alertada e o veículo suspeito foi interceptado. Seus ocupantes, então, identificaram-se como agentes da Abin. Disseram que estavam em uma operação para prender contrabandistas russos. Procurada por VEJA, a agência não quis se pronunciar. A assessoria do Gabinete de Segurança Institucional avisou que não comentaria se o ministro Jorge Felix sabia ou não da participação da Abin na investigação.
Dinheiro apreendido na casa de Hugo Chicaroni, ligado a Dantas: tentativa de subornar delegado
O delegado Protógenes, perdido nas névoas de sua teoria conspiratória, atira para todo lado. Entre seus alvos aparece o próprio ministro presidente do STF, Gilmar Mendes. Na semana passada, o ministro encaminhou uma representação ao Conselho Nacional de Justiça pedindo investigações sobre uma provável invasão de seu gabinete, onde teriam sido instaladas câmeras de vídeo com o objetivo de espioná-lo. Em conversas com auxiliares, Protógenes revelou que a polícia tinha imagens gravadas no gabinete do ministro que mostrariam uma estranha proximidade de assessores do tribunal com os advogados de Daniel Dantas. A insinuação: o presidente do Supremo Tribunal Federal teria concedido o habeas corpus libertando o banqueiro mediante um acerto prévio com os advogados.
Mendes tomou conhecimento da suposta invasão por meio da vice-presidente do Tribunal Regional Federal de São Paulo, a desembargadora Suzana Camargo. A magistrada ouviu do juiz Fausto de Sanctis, o responsável pelo processo de Daniel Dantas, a informação de que a Polícia Federal havia gravado reuniões dentro do gabinete do ministro, inclusive revelando detalhes das conversas – numa delas, havia críticas à fragilidade dos argumentos jurídicos do juiz. Procurada por VEJA, a desembargadora classificou o episódio como um "mal-entendido", disse que a história "não foi bem assim" e pediu que o ministro fosse procurado para confirmar. O juiz De Sanctis divulgou nota informando que não autorizou o monitoramento contra Gilmar Mendes ou contra qualquer outra autoridade da Justiça superior. Portanto, se houve a gravação, como confidenciou o juiz à desembargadora, ela foi feita de maneira clandestina pelos policiais ou pelos espiões da Abin. O presidente do STF levou o caso ao ministro da Justiça e ao diretor da Polícia Federal. Os dois afirmaram desconhecer qualquer ação ilegal da PF – e não poderiam, é óbvio, dizer outra coisa. "Os órgãos estatais, há algum tempo, estão atuando no limite do que poderíamos chamar de justiçamento. Embora muito grave, isso não me surpreende mais", disse Gilmar Mendes. O tribunal fez uma varredura no gabinete do ministro e nada foi encontrado.
A atuação e o inquérito do delegado Protógenes, que abriga contrabandos de Lacerda contra seus desafetos, só não podem ser classificados como típicos de um estado policial, porque os estados policiais costumam ser mais competentes. Em determinados momentos, ele parece um aluno de faculdade de sociologia tentando impressionar o mestre esquerdista com frases de efeito. Para justificar a renovação da autorização dos grampos telefônicos, Protógenes recorre a uma frase do destrambelhado lingüista americano Noam Chomsky: "A mídia é um veículo independente, comprometido com a verdade e imparcial, certo? Errado!". Ao ritmo de uma revolução por parágrafo, cita, ainda, o suíço Jean Ziegler, autor do livro A Suíça Lava Mais Branco: "Se prevalecem grandemente da deficiência dos dirigentes da sociedade capitalista contemporânea. A globalização de mercados financeiros debilita o estado de direito, sua soberania e sua capacidade de agir". Ele também acha que Freud não explica: "Comparar a gigantesca organização criminosa comandada por D. Dantas com a de N. Nahas seria um ‘paradigma ingênuo’ ou aplicar a simetria das condutas criminosas estaríamos diante de um método freudiano primitivo e ridículo". Não tente entender. Não tem sentido.
No inquérito, há uma "análise" segundo a qual o banco Opportunity "tem pessoas infiltradas no Comando do Exército, onde estes indivíduos promoveriam os interesses do grupo, principalmente espionando ações militares estratégicas e secretas". Será que Dantas planejava montar uma base de mísseis em sua cobertura na Vieira Souto? O delegado Protógenes mostra também que não baixará a guarda "contra tudo isso que está aí". Ao abordar uma suposta tentativa do deputado Delfim Netto", articulista da revista Carta Capital, de emplacar Naji Nahas na gestão do fundo soberano planejado pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega, ele vocifera: "Ante as ameaças de corsários saqueadores das riquezas do nosso país, deixo aqui registrado que o ‘amanuense’, que ora subscreve a presente peça, e por ‘cautela’ alerto aos incautos, seja de forma individual ou organizados criminosamente para tal finalidade, que estarei de prontidão comparado a um integrante da Brigada dos Tigres, fazendo um acompanhamento detalhado do futuro Fundo Soberano". Ouvido por VEJA, Delfim Netto disse: "Esses métodos de investigação têm de ter limites dentro do estado de direito. Eles não só invadem a privacidade das pessoas que não têm qualquer relação com a investigação – o que, por si só, é gravíssimo – como também, neste caso específico, violentam a lógica. A investigação diz que eu planejo tirar vantagens escusas da criação do fundo soberano. Como, se fui contra o fundo soberano desde o começo? Isso aí é público. Isso não é trabalho da Polícia Federal. É produto de um insano dentro da PF. Deve ser um neonazista. Sabe Deus o que a cabeça do sujeito imagina".
Nas partes referentes a Naji Nahas, toda a mitomania do especulador é levada a sério por Protógenes. Uma das sandices que mais ganharam repercussão na imprensa foi aquela em que se atribui ao especulador a posse de informações privilegiadas do Federal Reserve, o banco central americano: "Homem não identificado fala aparentemente de New York e antecipa para Naji a queda da taxa de juros, controlada pelo Fed americano, em até 0,5%... N. Nahas, segundo ele próprio revela que foi o presidente do Banco Mundial que lhe repassou esta informação. Tal fato ocorreu com vinte dias de antecedência, podendo então direcionar seus investimentos com certeza, aonde o mercado financeiro globalizado tinha dúvidas". O Banco Mundial nada tem a ver com o Fed, ambos ficam em Washington e as mudanças da taxa de juros americana são antecipadas corretamente pelo mercado em 99% das vezes.
No inquérito, há a transcrição de uma conversa entre "possivelmente" Gilberto Carvalho, chefe-de-gabinete do pre-sidente Lula, e Humberto Braz, homem de Dantas. O diálogo gira em torno de uma "conta-curral", na qual aparentemente seria depositada uma quantia em duas vezes, em troca de um trabalho de "consultoria". Carvalho, na conversa, é chamado de "Giba". Procurado por VEJA, o chefe-de-gabinete da Presidência, por meio da assessoria de imprensa do Palácio do Planalto, afirmou que jamais conversou por telefone com Humberto Braz, a quem não conhece. Disse ainda que ninguém o chama de Giba. "Meu apelido é Gil." E concluiu: "Isso tudo é uma maluquice". É mesmo. Só que, por causa dela, Dantas e companhia talvez não paguem por seus crimes – os de verdade.

A "mídia" também é inimiga
Os espasmos ideológicos do inquérito da Polícia Federal são particularmente violentos nas partes dedicadas à "mídia" – expressão preferida pelos inimigos da liberdade de expressão quando se referem à imprensa. O delegado Protógenes chegou a pedir a prisão da repórter Andréa Michael, do jornal Folha de S.Paulo, porque ela noticiara, em abril, a existência de uma operação em curso para prender Daniel Dantas. De acordo com o delegado, que a ela se refere como "travestida de correspondente na cidade de Brasília", isso teria dificultado a ação policial. Problema seu, doutor Protógenes, se a PF foi incompetente para manter o segredo da operação. O que não pode, numa democracia, é punir o mensageiro porque ele fez o seu trabalho. No inquérito, há menções a conversas que Dantas e Nahas teriam mantido com outros jornalistas da Folha, do jornal Valor Econômico, das revistas Época e IstoÉ Dinheiro. As referências a VEJA são sórdidas e especialmente desprovidas de evidências mínimas – porque, de fato, elas não existem. Em várias passagens, o delegado Protógenes tenta estabelecer uma ligação entre a revista e Daniel Dantas. Não apresenta uma única prova e, pior, distorce as provas em contrário. O inquérito contém uma gravação em que um dirigente da empresa de Daniel Dantas ameaça entrar com ação judicial contra uma reportagem de VEJA intitulada "A guerra nos porões". A "análise" do delegado procura deliberadamente e sem sucesso falsificar o sentido da informação. O desvario de Protógenes em relação à imprensa é tamanho que o juiz Fausto de Sanctis o ignorou em seu relatório.

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